O ENSINO DE CINEMA MULTI- PLICADO

Entrevista por Ana Paula Málaga Carreiro

Formação de roteiristas, realização de cineclubes e oficinas de cinema: iniciativas para descentralizar e democratizar o cinema no sul do Brasil.

Marcelo Munhoz, trabalha e ensina cinema em Curitiba, cidade localizada no Sul do Brasil, fora do eixo Rio de Janeiro / São Paulo, onde a maior parte da produção audiovisual brasileira está localizada. Ele é o criador de diversos projetos que têm como principal objetivo levar o audiovisual de forma gratuita para quem não tem acesso a ele. Em seu trabalho há um grande desejo de que o conhecimento seja multiplicado, quanto mais profissionais saiam capacitados para ensinar o que aprenderam durante esses projetos, melhor. Ao descentralizar e democratizar o ensino de cinema, Marcelo está tornando o sonho de muitos brasileiros realidade.


🟢 Você poderia por favor se apresentar e falar um pouco sobre como você começo a trabalhar com cinema?

Eu tenho formação em jornalismo pelo Universidade Federal do Paraná e durante a faculdade, nos anos 1990, eu comecei a fazer teatro também. Eu tive a oportunidade de trabalhar como ator e a partir de um curta-metragem dirigido pelo Luciano Coelho, nós criamos uma parceria e começamos a trabalhar juntos em alguns roteiros.


Nessa época surgiu um desejo nosso de realizar filmes documentais. Nós percebíamos que o espaço do cinema era um espaço que nos atraia, mas era muito elitizado, tanto nos temas, quanto no formato. Nós queríamos sair desse circuito e mostrar um outro lado de Curitiba. A partir disso surgiu o Projeto Olho Vivo, cujo nome vem da ideia de estar atento a uma outra realidade da cidade. Encontramos nos documentários um espaço para retratar temas que a gente não via quando se falava da cidade, fizemos filmes sobre grafiteiros, catadores de papel, sobre a Vila das Torres (uma comunidade carente e com alto índice de criminalidade), sobre públicos e temas que na época eram pouco retratados, ou mostrados com algum estigma pela imprensa.

🟢 E como você começou a trabalhar com oficinas de formação em cinema?

Depois de um ano do Projeto Olho Vivo nós começamos a realizar oficinas para as pessoas com as quais fazíamos os documentários. Mas depois dessa primeira experiência nós entendemos que existia um grande problema: que essas comunidades e grupos que estavam nos documentários não fazia as oficinas que ofertávamos, ou começavam e desistiam em seguida. Era um público que se sentia excluído, que sentia que esses espaços de formação não eram deles. Daí surgiu essa primeira ideia chamada Minha Vila filmo eu que teve patrocínio direto da Petrobrás para a primeira edição em 2005. E qual era a diferença com o que fazíamos antes? A diferença é que o Minha Vila filmo eu foi buscar um parceiro dentro da comunidade, O Clube de Mães da Vila das Torres, e ofereceu a oficina na Vila, a partir de temas que nasciam ali dentro. Nosso parceiro nos colocou em contato com um público infantil e pré-adolescente e realizamos com eles um curso que finalizava com um curta metragem em que próprios participantes definiam o tema.

🟢 Você sabe se o “Minha Vila filmo eu” gerou outros projetos ou teve desdobramentos?

No começo a gente tinha muito uma imagem de que íamos capacitar as pessoas, que elas iam continuar trabalhando e que nós íamos acompanhá-las, mas ao longo dos anos fui percebendo que os participantes seguem seus caminhos independentes dos projetos que propomos. Eu acho que o cinema é isso, nós não temos controle nenhum sobre o resultado das coisas que fazemos. Realizamos esse projetos pois existe uma vontade grande de compartilhar e eu sinto que é isso que temos para oferecer, depois nos resta deixar as ideias fluírem sozinhas. O manual do Minha Vila filmo eu é isso. Fizemos uma tiragem de 1000 exemplares para distribuição gratuita e já encontrei muitas pessoas que usam o livro em aulas de cinema em escolas ou outros espaços. É importante saber que essa semente está lançada.


No Brasil há uma descontinuidade de políticas públicas em todas as áreas, mas na cultura principalmente. Há uma sensação de que quando a gente estrutura alguma coisa isso em pouco tempo já se desmonta. Há uma perda do fio da memória do Brasil, tudo se inicia, se dissipa e se fragmenta no espaço Essas sementes geram frutos, mas de uma forma que não é possível mapear, as referências de origem e filiação das coisas se dissipa.

🟢 O projeto “Lá Longe, Aqui Perto – Cinema nos Faxinais” foi realizado em um ambiente rural, no interior do Paraná. Como foi realizar essa iniciativa?

Se no Brasil já há essa dificuldade de implementar programas e dar continuidade a projetos, no interior é ainda mais complexo. O projeto Lá Longe, Aqui Perto – Cinema nos Faxinais consistia na realização de oficinas de cinema, formação de professores e exibições de filmes em cineclubes para comunidades rurais do sul do Brasil chamadas Faxinais. Os faxinais existem há pelo menos 200 anos e seus habitantes vivem em equilíbrio com a natureza. A única cerca existente é a que delimita os faxinais, servindo de divisa entre as plantações de alimentos e o faxinal em si. Cada morador é dono de seus bois, porcos e ovelhas, mas a terra é de uso comum, todos os animais vivem soltos.


A floresta também é comunitária, de onde os moradores extraem pinhão, erva-mate e plantas medicinais.

Toda a experiência do Lá Longe, Aqui Perto foi muito bonita. 95% dos participantes do projeto nunca tinha ido ao cinema, nunca tinha visto um filme na tela grande, então teve uma felicidade dessa vivência. As imagens mais fortes que eu tenho foram com crianças. Quando chegava no final das sessões infantis era possível ver nos olhos delas como a experiência tinha acessado algo muito íntimo, que o filme moveu elas para uma outra dimensão com elas mesmas. Nesses momentos eu via a potência do projeto. Depois que o projeto acabou nós acompanhamos duas iniciativas de participantes, cineclubes organizados por monitoras do projeto e que continuaram depois da formatura. Um deles continuou por 6 messes e ooutro, que tinha um vínculo com uma escola, durou cerca de um ano e meio.

🟢 Você também trabalha com projetos com foco principal em roteiro, você poderia falar um pouco sobre essas iniciativas?

No mesmo período que realizamos o Minha Vila Filmo Eu, surgiu um novo projeto, chamado Ficção Viva, que nasceu quando eu e o Luciano Coelho estávamos produzindo muitos documentários, mas já buscando filmes que traziam a ficção na sua realidade como representação.


O Ficção Viva nasceu em 2008 e no primeiro ano pesquisamos três áreas: interpretação, filmagem e roteiro. Essa primeira edição foi muito importante, tem cineastas que começaram nesses cursos e estão até hoje trabalhando na área, ganhando prêmios em festivais de cinema, indo estudar fora do Brasil.


Na segunda edição, feita em parceria com o diretor e roteirista Rafael Urban, o Ficção Viva já focou especificamente em roteiro. O objetivo era trazer roteiristas renomados, como Karim Ainouz, Kleber Mendonça Filho, Carlos Reygadas, Lucrecia Martel, Guillemo Arriaga e Miguel Gomes, para ministrar oficinas gratuitas. Esses convidados vinham com uma visão bastante vertical num ponto de vista de criação e concepção de cinema e o Ficção Viva possibilitava que roteiristas de Curitiba, uma cidade do Sul do Brasil, fora do eixo Rio/São Paulo, tivessem contato com esses profissionais mundialmente reconhecidos.

🟢 E há algum projeto focado na formação de roteiristas?

Em paralelo, ao Ficção Viva eu desenvolvi o Núcleo de Projetos Audiovisuais (NPA), que é focado no desenvolvimento de roteiros, com o acompanhamento e mentoria de profissionais da área. Enquanto o Ficção Viva trazia esses grandes nomes internacionais para expor seus processos, o NPA é voltado para pessoas iniciantes que querem aprender como tirar ideias do papel.


O Núcleo de Projetos Audiovisuais segue existindo até hoje e é muito legal porque a gente sente que esse espaço está aberto e que existem muitas pessoas querendo aprender e podendo fazer isso de graça. No NPA existe uma rede, um espaço para formar contatos, aprender a criar coletivamente, com várias cabeças pensando juntas. Isso é um jeito de conectar pessoas e nesses tempos de pandemia isso se intensificou muito. Nas masterclass gratuitas que ofertávamos nos anos anteriores a gente tinha uma média de 130 inscritos por ano, em 2021 tivemos 450 inscritos do Brasil todo e de fora também, de países como Portugal e França. Nesse ano montamos 3 turmas diferentes de formação de roteiristas: para roteiros de curta-metragem, de longa e de série. São grupos de trabalho virtuais tendo a experiência de escrever junto e de criar roteiro, o que acaba sendo um treino para trabalhos profissionais futuros.

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