QUANDO A ESPIRITUALIDADE DIALOGA COM AS NOVAS TECNOLOGIAS

Entrevista por Mamadou Gaye

Éuma das vozes mais importantes da cena artística brasileira. A sua espiritualidade foi de uma grande ajuda para enfrentar a crise. A casa dela, a família e as novas tecnologias foram os meios que ajudaram Mariene de Castro a manter um vínculo presente e forte com o público e lutar contra o sentimento de isolamento que atingiu todo mundo. A conversa com essa grande artista me deixou a sensação do que todas as suas experiências de vida tinham preparado essa filha de Iansã1 a enfrentar essa crise com serenidade

  1. IANSÃ, YANSÃ OU OYÁ : é o ORIXÁ dos fenômenos climáticos. Ela é a força dos ventos, o poder da natureza, e aquela que surge quando o céu se precipita em água e ventania. É a garra, a independência e a força feminina. JULIANA VIVEIROS TONIN – Tudo Sobre Iansã Ou Oyá, Orixá do Direcionamento.

🟢 Estamos em março de 2020 e as autoridades brasileiras mandaram fechar tudo, inclusive os espaços de show. Como foi para você esse momento?

Eu estava a uma semana, ou menos que isso, da estreia de “A Caso Casa“, em Salvador, São Paulo e Recife. Já tinha ingressos vendidos, tudo certo. Estávamos na semana dos últimos ajustes, ensaiando, quando veio a pandemia. Então para gente, foi uma surpresa, para o mundo, para o nosso mundo. Mas desde o primeiro momento… que eu vi tudo isso acontecer, claro que deu aquela sensação, poxa e gora ? Mas como eu tenho uma coisa comigo de que, nada na vida acontece sem a permissão de Deus, e se isso tinha que acontecer, tinha um propósito de acontecer. Eu procurei aceitar, dentro de mim e acreditar que era o que precisava acontecer, guardar as malas, guardar os figurinos. Voltar para dentro de casa, ficar recolhida e viver um dia de cada vez. No início foi esse sentimento que alimentei para não me desesperar, nem ficar com ansiedade. A gente não imaginava que chegaríamos quase um ano depois em plena pandemia. Eu tinha uma relação super restrita com as redes sociais, com a tecnologia e continuo aprendendo a lidar, então foi muito tudo de surpresa, com essa questão estrutural de carreira de ter alguns shows previstos, já tinha um projeto de festival nos Estados Unidos e tivemos de recomeçar a partir de casa. A sensação que eu tenho é que depois de mais de 20 anos de carreira preciso recomeçar

🟢 Você organizou vários encontros/conversas e shows ao vivo no Instagram. Como foi esse movimento, essa nova realidade para você ? Quais foram as dimensões positivas dessas restrições que te fizeram trabalhar de uma outra forma ?

Para mim a coisa mais positiva, foi ter um excelente músico a poucos passos de mim, que também estava em uma quarentena cuidadosa e criteriosa. Tanto eu quanto ele, tivemos sorte, de estarmos perto um do outro, em um momento como esse. Quando comecei a fazer os primeiros ensaios com ele, inicialmente era uma coisa bem despretensiosa. Começamos rezando a Ave Maria, conversava com pessoas no Instagram e então comecei a chamar de “Resenha da Maricota“, porque era uma coisa onde eu falava sobre espiritualidade, passei a convidar líderes religiosos para falar da intolerância religiosa. Essa intolerância que vivemos há tanto tempo, uma guerra religiosa. Iniciava as 18h cantando a Ave Maria de Dalva de Oliveira que eu escutava quando era criança, minha vó que me ensinou. “Ave Maria nos seus andores, roga por nós os pecadores…“ Para mim tem uma referência muito grande a Oxum2, a nossa senhora, a Maria, ao oceano, a Yara a energia de Oxum nessas Marias, por isso eu cantava a Ave maria às 18h. O Lula, meu amigo e vizinho, as vezes estava aqui em casa tocando, então ele falou que ouvindo meus discos, lembrou que eu falei que tinha muita vontade de gravar o DVD Colheita, começamos a tocar e ele começou a tirar minhas músicas. Nunca tínhamos tocado juntos, apesar de sermos amigos há muito tempo, não havia uma relação profissional entre nós.

  1. OXUM : é um termo que vem da língua iorubá, tendo como origem o nome do rio Osun, localizado no sudoeste da Nigéria. Não por coincidência, Oxum é considerada dona das águas doces tanto no Candomblé quanto na Umbanda (religião na qual é sincretizada com Nossa Senhora da Conceição, santa católica). A orixá representa o poder feminino através do arquétipo da mulher elegante e amorosa, mas também inteligente, determinada, persistente, desinibida e senhora da fertilidade. GIOVANNA HEMERLY – Oxum e o poder do feminino no Candomblé. A maior surpresa positiva disso tudo foi ver meus filhos tocando de uma maneira muito especial. Quando eu me deparei com essas crianças que eu gestei, amamentei, cuidei criei. Foi muita luta para criá-los sozinha. Quando olhei para eles, foi como se a música que eu fiz ao longo desses anos, fizesse parte deles, eles estavam lá inteiros. Combinamos de João, meu filho mais velho participar de um show, tocando duas músicas. Quando eu vi ele não saia do atabaque no show, eu olhava e ele continuava lá, ele acabou tocando o show todo. Perguntei para ele depois: “Você sabe todos os arranjos, todas as músicas?“ Ele respondeu “mãe você esqueceu que eu toco com você há 21 anos ?“ Meus filhos estão inconscientemente tocando comigo desde que nasceram. Neles é algo espontâneo, orgânico.

🟢 Estamos agora em janeiro de 2021 e ainda “recolhidos“ e sem possibilidades de shows ou eventos públicos apesar da chegada da vacina. Quais são seus projetos para esse início de ano ?

Já estou preparando um show agora e outro para fevereiro, já comecei a escrever, é nesse meu mundo, no meu universo, que é muito sincero, eu consigo alcançar as pessoas. Porque faço tudo isso, com ajuda de amigos e minha família, eu não tenho um trabalho de marketing, nem gravadora. Fiquei sem empresário em meio à pandemia e isso foi um grande presente para mim, porque eu tive que tomar tudo em minhas mãos. Tive que me empoderar por completo de todo e qualquer âmbito da minha vida, com consciência de tudo. Saber com quem eu realmente poderia contar e com quem eu ia querer dar os próximos passos. Eu consegui lançar meu primeiro disco, em plena pandemia, Abre caminhos gravado há 15 anos. Ele teve uma pequena tiragem de 1.000 copias na época e agora eu consegui lançar em plataformas digitais. Era o meu tesouro guardado e eu não imagino porque não tinha conseguido lançar antes.

🟢 Você acha que essa pandemia, ajudou a arte e a cultura de modo geral? Eu moro só, ouvi muita música, dancei em casa sozinho todos os tipos de músicas, você acha que a pandemia mudou o papel da música e da cultura de forma geral?

Estamos em um momento que as pessoas precisam se reinventar, entender que precisamos guardar nossos figurinos, refletores, caixas. Cada um na sua proporção, tivemos que voltar para esse lugar, de quem está começando dando os primeiros passos, de cantar a capela, porque não tem um músico para acompanhar e porque não toca nenhum instrumento. Vi artistas com 30 anos de carreira usando playback para cantar, coisas que ninguém imaginava fazer. Acho que foi extremamente necessário deixar de lado a vaidade e mostrar, de cara limpa quem somos. Esse sou eu, eu canto assim, o timbre da minha voz é esse, essa é minha voz sem nenhum efeito, sem equalização, sem nenhuma máscara, sem nenhuma maquiagem, eu sou essa pessoa que você está vendo. O mundo da música se comportou, como as pessoas se comportaram, de acordo com a condição e com a desigualdade que esse país vive. Quem tinha pouco viveu com esse pouco, alguns conseguiram florescer, transformar esse pouco em muito, e quem tinha muito com muito ficou. Eu não sei, como esse muito se transforma em um momento como esse, em um mundo que parece que todos somos iguais. Estamos todos em uma pandemia, e aparentemente estamos todos no mesmo barco, mas claramente não estamos todos no mesmo barco porque cada um tem uma condição. Vivemos em um país muito desigual e artisticamente isso também acontece, tinha gente que cantava no celular só a capela e outros com uma super estrutura. O que quero dizer é que a música ajudou muito as pessoas que esta vam em casa em momentos de solidão. Nesse momento de gerar lives uma atrás da outra e viver uma agenda de lives, eu não sei como foi o mundo do espectador, eu penso do lado de cá como artista, mas isso agregou muita gente. Foram vastos conteúdos que tivemos, várias experiencias, a música vem com a singela missão de cura, mostrando que é generosa que ela não nos abandona, que ela proporciona mesmo que de longe.

ampersan Amérique art and pandemia art et pandémie arte y pandemia Asuncion Barranquilla Caraibes Caraïbes cine cinema cultural rights culture derechos culturales direitos culturais droits culturel indigene industria musical latine Marcelo Munhoz nicolas mateus écologie

5/5

Articles Similaires

ÉDITION PLURILINGUE, La revue digitale d’Alliances Sonores

Accès direct aux articles

Pays

Plus d'articles

No more posts to show

Mots-clés

Voir la revue en ligne

Voir le pdf complet

Plus d'articles

GALERIE PHOTOS